terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Xadrez

A vida não é um jogo de xadrez. Melhor dizendo, as regras, definitivamente, não são as mesmas. A rigidez dos personagens envolvidos ou, até mesmo, de suas jogadas, não pode corresponder à realidade do mundo. A vida seria insuportável, de tão monótona. A mais importante partida que tive conhecimento, quebrou com todas as expectativas e regras, criando um jeito bem diferente de se encarar as batalhas do dia a dia. Quebrou as regras, até mesmo das histórias... ao invés de terminar tudo em tragédia, tudo começava em uma.
Com apenas duas movimentações e, o Rei, já estava tombado no campo de batalha. Tombado ou, talvez, só tenha sentado no chão, muito cansado de tanta luta, se retirado para o banco de reservas com mulher e filhos pra criar. A Rainha era, na verdade, paixão de sua vida, mas uma causa muito difícil de ser sustentada e, com o tempo, sua movimentação no tabuleiro, nem era mais a mesma.
Desvantagem clara. Eram as peças negras, eles haviam sofrido o primeiro ataque. Aliás, sofreram o primeiro ataque por um costume horrível de deixar tudo pra depois... aquele tipo de gente que acredita que nunca serão atingidos e, todo dia, perdem um pouco mais da liberdade, dos direitos. Então, a Rainha, que era a Causa, os Ideais, a Musa deste exercito, já não vinha sendo grande coisa nos últimos anos. Imagina agora, com o Rei tombado. Era o fim da partida.
As peças maiores começaram a se retirar do tabuleiro. Não tinha mais o que ser feito. Tudo o que acontece em um jogo normal, a não ser pelo fato de que, os peões, continuaram parados por lá. Firmes e de armas em punho. Foi aí que o Bispo disse:
_ Ei rapazes, não temos mais o que fazer aqui. – e disse pra si mesmo – peões... não são muito inteligentes.
Era um daqueles bons conselhos que os mais experientes nos dão. Óbvio que os peões perceberam a loucura que estavam fazendo. Eram peões inexperientes e ingênuos, acreditando que o jogo poderia ser jogado apenas com eles. Quem eles pensavam que eram? Abaixaram as armas e começaram a retirada. Ao fundo, podiam ouvir as risadas das peças brancas, que já tinham ido todas embora. Só um peão permaneceu parado. Aliás, uma peça muito estranha, que não esboçava nenhuma reação. Parecia ter os olhos para dentro de si.
Uma peça de xadrez observadora! Coisa mais absurda, ainda mais, sendo ela, um peãozinho qualquer. Tão igual aos outros. Mas a ironia de tudo é que o peão, pensava nisso mesmo... ser igual aos outros.
Os peões eram iguais, quem perceberia qual peão é qual peão? Peão serve pra ficar na frente, na linha de batalha. São apenas números. Peças sem importância... sem passado ou futuro. Daí, se qualquer peão, poderia ser qualquer outro peão, por qual motivo um peão não poderia ser um Cavalo, uma Torre e, quem sabe, um Rei.
O que não sabíamos nessa história toda é que esse peão pensante, não começou a pensar sozinho. Não se tratava de um peão-gênio, era um peão comum... [quer dizer, nem tão comum]. O que fazia esse peão diferente era um costume diferente. Diferente, inclusive, entre as peças de nobreza. Era um peão leitor.
Um peão que começou lendo as regras do xadrez, que vinham em um encarte junto do tabuleiro. Depois leu sobre outras regras e mais regras e muitas das regras do xadrez. Viu que aquilo era bom e descobriu que, em outros jogos, existiam outras regras. Esse tipo de literatura revolucionária o fez pensar: “se fosse num tabuleiro de damas, eu teria outra história”. Damas, gamão, mancala, go e mais um tanto de jogos, permitiam jogadas diferentes. A batalha poderia se dar de muitas formas e ele preso no tabuleiro preto e branco.
Continuou parado, sem arredar um passo para trás, mas os lábios começaram a se mexer. Ele discursava, dizia bem alto:
_ Ainda podemos lutar [...] o jogo continua se [...] certa vez, conversando com uma peça de gamão eu descobri que [...] as habilidades de cada um podem...
Falou bastante, mas as peças não lhe deram muita atenção. Logo, retornaram seu trajeto para saírem do tabuleiro, deixando o nosso herói sozinho.
Todas as peças, uma a uma, se retiravam do jogo. O peão permanecia firme. Por fim, sobrou ele um Cavalo, o último a sair. O último, por que no fundo, ficara em dúvida consigo. O peão parecia tão maluco que devia ter uma lógica naquilo tudo que ele falava. Quase pronto para pular do tabuleiro, olhou para trás e disse:
_ Se você tiver coragem de levar isso até o final, eu fico aqui ao seu lado. – e continuou – Você tem certeza disso tudo que disse?
O peão, com um sorriso meio tímido, meio orgulhoso respondeu:
_ Tudo o que disse, foi por conta das minhas incertezas, de não saber quais casas ou quantas, me eram permitidas andar. Certeza eu não tenho nenhuma.
O cavalo virou de costas para a borda do tabuleiro, chegou mais perto do peão, olhou aquela pecinha de cima a baixo. Sabia que tinha todos os motivos do mundo pra se arrepender em breve, mas sabia também que, se não ficasse até o fim, iria se arrepender muito mais. Então perguntou para o peão:
_ E qual o primeiro passo?
_ Podemos começar pelas regras do jogo...

Marcelo T. Marchiori